13.12.25

Grande Angular - Boas e más notícias

Por António Barreto

É a notícia que fica deste fim de ano. O “Economist”, prestigiada revista e importante centro de estudo e informação, publica, uma vez por ano, uma classificação do comportamento das quase quarenta economias desenvolvidas (da OCDE) no último ano.  Portugal, país do “pastel de nata”, como eles próprios referem, em português no original, ficou em primeiro lugar. Finalmente, nem que seja por um ano, Portugal é o melhor do mundo, designação mil vezes repetida a propósito de todas as coisas e nunca verdadeira. Depois de termos sido informados de tal feito, já ouvimos tudo. É merecido, é uma confirmação e ninguém faz melhor, dizem uns. Ou então, não é bem assim, faltam muitos critérios, é uma visão parcial, é só capitalismo e falta o mais importante, garantem outros. Felizmente, temos de viver com todas as opiniões. Ainda bem que é assim. Mas, para já… Parabéns aos portugueses, aos trabalhadores, aos empresários, aos gestores e ao governo…. Parece a consagração de um breve período de alguns anos durante os quais foi possível melhorar o crescimento, a inflação, o produto, o investimento, o emprego e a exportação. Assim os portugueses consigam manter o ritmo e progredir. Há muitos anos que precisávamos disto.

 

Boa notícia também é a do balanço da pobreza em Portugal, válido para 2024. O INE (Instituto Nacional de Estatística) e Carlos Farinha Rodrigues publicaram e comentaram os dados do inquérito anual às condições de vida e do rendimento. A “taxa de pobreza” ou a percentagem de pessoas a viverem em risco de pobreza passou de perto de 16% para 15%, atingindo o seu valor mais baixo dos últimos trinta anos! Acrescente-se que a taxa de risco de pobreza diminui para cerca de metade com a inclusão das transferências sociais (reforma, pensões, saúde, família, etc.). Tudo isto merece análise pormenorizada, mas os valores mais gerais são estes. Será preciso prestar atenção às condições de habitação (em degradação acentuada) e à pobreza infantil (em risco de crescimento). Como importa não generalizar estupidamente, como seja, por exemplo, assegurar que a qualidade de vida dos portugueses melhorou significativamente. Mas o que é certo é que esta enorme chaga da sociedade, que é a persistente pobreza, teve uma diminuição importante. E que o indicador de desigualdade, outra ferida profunda na população portuguesa, melhorou também. 

 

Má notícia foi a greve geral e sobretudo as reacções, designadamente as do governo. As avaliações e as estimativas raiaram a loucura ou o surrealismo. A participação ou o número de grevistas situam-se entre os menos de 10% (para o governo) e os mais de 80% (para a confederação sindical). Como não há instituição isenta capaz de avaliar, ficamos dentro destes valores, de acordo com as nossas simpatias. Mas é pena que assim seja. Conhecermo-nos a nós próprios e perceber melhor os factos serão sempre bons princípios de vida. 

 

De qualquer maneira, a pior avaliação deve ser a do governo. Classificar de “inexpressiva” uma greve geral que, queiram ou não, teve realmente significado e expressão, é de uma inesquecível indigência política. Não havia comboios nem eléctricos, faltavam os autocarros, rareavam os aviões e, pela falta de movimento e de trabalho, os carros eram escassos. Muitas cirurgias e consultas foram canceladas. Numerosas escolas em todo o país encerraram. Dezenas de serviços públicos reduziram as suas actividades ou fecharam portas por falta de condições e de funcionários. Na ausência de transportes públicos, os preços dos carros de aluguer para certos trajectos aumentaram até 200% ou 300%. Pelo que se percebe, a greve foi importante e significativa. Foi também muito irregular, desde sectores privados no comércio e na indústria totalmente imunes, até aos que sofreram reduções muito significativas. Esperemos que um dia haja, para futuros casos, instituições de avaliação ou arbitragem isentas que nos informem e que impeçam o governo de se comportar como uma autocracia de outras paragens e de outros tempos.

 

Verdade é que o actual governo faz o que faz com intenção, não por estupidez ou ignorância. Pretendeu alterar de modo excessivo e desnecessário as leis laborais porque quis abrir clivagens e rupturas na sociedade. Tentou fazer leis que provocam mais instabilidade e conflito do que produzem melhoria social e económica, pois que pretende avivar a luta das classes. O governo vive obcecado com o sentido da fatalidade, com a ausência de maioria absoluta, com os riscos de dependência do Chega ou dos socialistas, com a impossibilidade de levar a cabo seu plano. O governo receia o contágio do Chega, assim como a sua mordida de morte. É verdade que o governo também quer dar poder aos seus amigos, da política e da economia. Mas esse é um desejo passageiro. O que realmente procura é a maioria absoluta, que julga poder alcançar com o conflito e o afrontamento. O governo sabe que as suas propostas de regras laborais para as mulheres, para os despedimentos e para os precários são desnecessárias e insensatas. Não procura o equilíbrio, tenta a instabilidade. É isso que quer.

 

Outro exemplo de má notícia é o persistente mau estado dos serviços públicos. Parece cada vez mais ser esta a grande chaga da sociedade actual. Toca a todos, mas agrava ainda mais a desigualdade. Castiga os mais fracos. Impede o crescimento. Aumenta a injustiça. E leva os cidadãos ao desespero. É a mais detestável praga da sociedade. Mesmo quando a economia cresce, a qualidades dos serviços baixa. Até quando a pobreza e a desigualdade diminuem, a inoperância e a ineficácia dos serviços públicos, com a respectiva injustiça, persistem, duram, alastram e desmoralizam. Filas de espera em todas as instituições públicas, atrasos nos cuidados de saúde, desordem endémica nos transportes públicos, falta de ordem e limpeza nas ruas das cidades e mau atendimento na segurança social e nos impostos. Em nenhum destes casos parece haver o mais pequeno progresso recente. Em todos estes exemplos há um agravamento constante. Nem o governo, ou governos recentes, nem as grandes autarquias, muito menos as instituições se sentem motivados e preocupados com a tortura e o tormento de todos quanto necessitam de usar os serviços públicos. 

O governo e seus conselheiros e estrategas estão convencidos de que uma pequena guerra social ou de classes pode trazer vantagens. E maioria absoluta. Por isso a vai procurar.

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Público, 13.12.2025

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8.12.25

O ESTADO NOVO DE SALAZAR, NA MEMÓRIA DE QUEM O VIVEU

Por A. M. Galopim de Carvalho

Só os portugueses e as portuguesas com mais ou menos 15 anos no dia 25 de Abril de 1974, hoje a rondarem os 65, podem ter memória crítica de algumas particularidades dos últimos estertores do Estado Novo, que viram cair. Rapazes e raparigas com menos idade, ou seja, as crianças desse tempo, talvez se lembrem de um pormenor ou outro. Só a chamada terceira idade, viveu ou sofreu um regime que nos privou de todas as formas de liberdade, torturou muitos de nós, durante quase meio século. Só os mais velhos, com 70, 80 ou mais anos, como é o meu caso, que, no 5 de Abril, somava 43 anos de vida, quase tantos, quantos os da ditadura, viveram e conheceram, em pormenor, a censura e a repressão. Só a “peste grisalha”, na deselegante expressão do deputado Carlos Peixoto do PSD, a quem o Estado garantiu uma pensão, mas, arrumou na prateleira dos esquecidos (leia-se reformados ou pensionistas), conheceu toda essa indignidade, esse sufoco.

Assim sendo, torna-se evidente que a grande maioria dos nossos adultos no activo pouco ou nada sabem de um regime que nos privou de todas as formas de liberdade, torturou muitos de nós, durante quase meio século e que caiu de podre no dia em que os cravos floresceram nas espingardas dos soldados.

É evidente que há excepções. Basta pensar no grande número de livros, dissertações, escritos diversos e outros trabalhos, da autoria de historiadores e outros estudiosos. Mas, também é evidente que o número destes portugueses, representa “uma gota de água” num universo de milhões, a quem a escola, do pós-25 de Abril, deu diplomas, mas não deu cultura.

Nos anos de 1930 e 1940, os das duas primeiras décadas de consolidação do Estado Novo, Portugal viveu em situação de ditadura, distinguindo apoiantes do novo regime e oposicionistas, de entre os quais se evidenciaram, por serem publicamente conhecidos, os que “se metiam na política”, localmente referidos como sendo “os do reviralho”. Eram os da chamada oposição democrática, consentida por Salazar, com destaque para os do Movimento de Unidade Democrática (MUD). Criado em 1945, foi extinto três anos depois, em virtude do grande apoio popular que registou, agrupando muitos opositores até então isolados, entre os quais muitos intelectuais e profissionais liberais. 

Outros opositores, que quase ninguém conhecia, militando na clandestinidade pelo Partido Comunista, eram activamente perseguidos, primeiro pela PVDE (Política de Vigilância e Defesa do Estado), entre 1933 e 1945, e, depois, pela sua substituta PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). A estes opositores, os “pides” deitavam-lhes a mão, levavam-nos para Lisboa, onde os interrogavam, brutalizavam, guardando-os depois, pelo tempo que entendessem, e, em alguns casos, assassinavam. Para os localizarem e denunciarem havia os informadores, também referidos por “bufos”, uns conhecidos, outros, não, pelo que se dizia que as mesas dos Cafés, os bancos do jardim, as paredes de todo o lado e até as pedras da caçada tinham olhos e ouvidos.

Para além das restrições à liberdade e da censura, fez-se sentir, também aqui, o decreto 27 003, de 14 de Setembro de 1936, que determinava: «Para admissão a concurso nomeação efectiva ou interina, assalariamento, recondução, promoção ou acesso, comissão de serviço, concessão de diuturnidades e transferência voluntária, em relação aos lugares do estado e serviços autónomos, bem como dos corpos e corporações administrativos, é exigido o seguinte documento com assinatura reconhecida: «Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». E, mais adiante: «Os directores e chefes dos serviços serão demitidos, reformados ou aposentados compulsivamente sempre que algum dos respectivos funcionários ou empregados professe doutrinas subversivas, e se verifique que não usaram da sua autoridade ou não informaram superiormente».

Embora na letra da Constituição de 1933, figurasse o princípio da igualdade entre cidadãos perante a lei, o Estado Novo considerava a mulher como mãe, dona-de-casa e, em quase tudo, submissa ao marido. A lei portuguesa de então, designava o marido como chefe de família, sendo reservado à mulher o governo da casa, o que se traduzia pela imposição dos trabalhos domésticos como obrigação, não tendo os mesmos direitos na educação dos filhos. Não tinha direito de voto, não podia ascender a determinadas chefias nem exercer cargos na magistratura, na diplomacia e na política. Sendo casadas, as nossas mulheres perdiam o direito a intervir nas suas propriedades, não podiam viajar para fora do país sem autorização dos maridos e não podiam trabalhar sem autorização destes. O marido podia dirigir-se ao empregador declarar não autorizar a mulher a trabalhar, o que implicava o seu imediato despedimento.

Em muitos hospitais as enfermeiras podiam ser impedidas de casar. Se casassem, podiam ser obrigadas a abandonar a profissão. As professoras tinham de pedir autorização para casar, o que só era permitido se o noivo satisfizesse determinadas condições, autorização publicada e em Diário da República O divórcio era proibido, devido ao acordo estabelecido com a Concordata de 1940, numa submissão do Estado à Igreja Católica. Assim, todas as crianças nascidas de uma nova relação, posterior casamento, eram consideradas ilegítimas, não podendo ter o nome do pai, ou seja, o do companheiro.

Na orientação ideológica antiliberal e de cariz católica do ditador, a existência da mulher confundia-se com a da família, estando-lhe reservado o espaço doméstico. A Obra das Mães pela Educação Nacional, organização feminina do Estado Novo, criada em 1936, tinha por objetivo “estimular a acção educativa da família e assegurar a cooperação entre esta e a escola nos termos da Constituição” de 1933. 

Nascida em 1912, como suplemento feminino do jornal “O Século” a revista semanal “Mulher – Modas & Bordados” dirigida nos primeiros tempos a uma pretensa elite feminina, fornecia-lhe conselhos nos domínios da moda, da culinária, das boas-maneiras e da beleza. Mostrou, porém, alguma preocupação de valorização da mulher, testemunhada pela publicação regular de sonetos da grande poetisa alentejana, Florbela Espanca (1894-1930), uma das primeiras mulheres a frequentar o Liceu Masculino André de Gouveia, onde permaneceu até 1912. Foi, porém, com Maria Lamas (1893-1983), opositora ao regime e feminista, na direcção desta revista que a luta contra a secundarização da mulher se fez sentir, não só em Évora, onde tinha ligações familiares, como no país. 

Depois de duas décadas de confronto com o liberalismo e o republicanismo, a chamada pax salazarista proporcionou à Igreja (grandemente afectada durante a Primeira República) um terreno propício à sua reimplantação e reestruturação interna. Nestes propósitos, assumiu papel fundamental o então Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), dirigindo a Igreja Católica Portuguesa durante o Estado Novo. Elevado ao cardinalato, em 1929, pelo Papa Pio XI, foi amigo íntimo e companheiro de Salazar (militante católico nos tempos da Primeira República), no Centro Académico da Democracia Cristã, em Coimbra. 

Com a subida de Salazar ao poder, o cardeal Cerejeira pôde garantir, à Igreja, potecção, respeito e liberdade de acção. Estava na sua mente recuperar e salvaguardar os privilégios do catolicismo, como Igreja do Estado, afastados pela Primeira República, tendo tido papel fundamental na assinatura da Concordata com a Santa Sé, em 1940, na criação da Acção Católica Portuguesa, visando a “recristianização” da sociedade, na obrigatoriedade do ensino religioso, na abertura de novos seminários e casas religiosas, bem como no desenvolvimento da imprensa católica.

Em 1936, com Carneiro Pacheco no Ministério da Educação Nacional (anteriormente chamava-se da Instrução Pública), reforçara-se o papel da escola no controlo ideológico e orientação política dos alunos, na prevalência do livro único, no culto das virtudes nacionalistas e no elogio da vida modesta e rural. O fervor patriótico e o cunho religioso enquadrados na ideologia oficial do Estado Novo estavam diluídos nas matérias curriculares, nomeadamente, na Leitura, na História e na Geografia, no propósito de, a partir dos bancos da escola, então com início aos sete anos de idade, estimular estas virtudes nos homens e mulheres do futuro.

Nestes anos, o ensino obrigatório ainda terminava com o exame da 3ª classe (3º ano, como agora se diz), certificado pelo diploma do “Primeiro Grau”, exigível, por exemplo, para ingresso nos lugares mais humildes da função pública, no comércio, como caixeiro, nos correios, como carteiro ou boletineiro e, até, para ser eleitor. Ler, escrever e contar era tudo o que, o cidadão comum necessitava para fugir à vida do campo, ao aprendizado artesanal ou oficinal e a outros trabalhos que apenas fizessem uso da força braçal. Esta habilitação mínima vigorou até 1956. A partir de então, a escolaridade aumentou para 4 anos, apenas para os rapazes. Só quatro anos depois, esta obrigatoriedade foi decretada para as raparigas.

Na Escola Primária, a pedagogia estava na ponta da régua, versão escolar da tradicional palmatória ou menina de cinco olhos. Com algumas professoras, as reguadas estalavam nas mãos das crianças “por dá cá aquela palha”, quer por motivos de disciplina, quer por erros nos ditados, nas contas e em quaisquer outras matérias. 

À margem da Escola Primária havia as chamadas “Escolas Incompletas”, criadas em 1930, mais tarde designadas “postos escolares”, com o propósito de combater o analfabetismo no seio de populações sem escola nem condições mínimas de fixar professores. Aqui o ensino era ministrado por “regentes escolares”. Na imensamente maioria mulheres, ganhavam metade do ordenado de um professor, bastava que possuíssem a 4ª, que demonstrarem ter bom comportamento moral e adesão ao regime e eram, de preferência, oriundas dos próprios locais.

A análise histórica da documentação permite verificar que, nesses anos, os professores, diplomados pelas Escolas Normais, foram sendo substituídos pelos regentes escolares, em especial nas aldeias e na periferia das cidades. A escolaridade obrigatória, como se disse, baixara para a 3.ª classe e as crianças estavam preparadas para trabalhar e ouvir o sermão do senhor padre aos Domingos.

Salazar procurou promover uma sociedade ruralista, dando relevo à família patriarcal e católica. No discurso de Salazar, proferido em 12 de maio de 1935, na sede da Liga 28 de Maio, em Lisboa, Salazar disse: «Oiço muitas vezes dizer aos homens da minha aldeia, «Gostava que os pequenos soubessem ler para os tirar da enxada». E eu gostaria bem mais que eles dissessem: «Gostaria que os pequenos soubessem ler, para poderem tirar melhor rendimento da enxada»

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6.12.25

Grande Angular - A escuta em vez de justiça

Por António Barreto

A divulgação, pela imprensa, das escutas telefónicas efectuadas durante anos a várias pessoas, incluindo ministros, empresários e funcionários, e aos seus correspondentes (entre os quais o Primeiro-ministro) deixou, mais uma vez, uma parte da opinião pública estupefacta. Por que razão se fizeram aquelas escutas, em que condições de legalidade e por que se guardaram tanto tempo? Todas parecem triviais, sem ilegalidade e crimes aparentes, mas todas deixam transparecer um teor de conversas hediondo, ridículo e trivial. Era seguramente isso que desejava quem efectuou a “fuga” de informação: “aquela gente”, que fala assim sobre estes assuntos, não é de confiança!

 

O problema é que, cada vez mais, quem facilita as “fugas” ainda merece menos confiança e seu comportamento começa a parecer-se com crime puro e simples. Não é a sua publicação que está em causa: desde que as informações chegam, por meios legítimos, às mãos dos jornalistas, estes têm a obrigação de as publicar. O problema está em quem as entrega ou deixa correr. Esse é o responsável e o seu comportamento merece censura e castigo.

 

As escutas telefónicas continuam, assim, a dar que falar. E a retomar sempre a ideia de que o mais simples e mais seguro será simplesmente a sua condenação e a sua interdição. Ninguém está seguro, nem os próprios agentes de Justiça, de que as escutas acatam os requisitos processuais. Quem escuta quem? Porquê? Quando? Durante quanto tempo? Em que condições? O que é que se escuta? Ninguém está seguro de que quem escuta esteja pessoalmente certificado para tal. Ninguém está seguro de que determinadas escutas não vão servir para processos ilegítimos.

 

Mesmo quando são legais, o que nem sempre será o caso, os processos de escuta são cada vez mais ilegítimos e mais orientados contra pessoas e organizações. A sua utilização é evidentemente discricionária e ilegítima. Não há escuta cuja revelação ou divulgação seja legítima. Ora, não há divulgação que não seja obra de juízes, oficiais ou procuradores. Ou por sua iniciativa. Ou por sua responsabilidade, isto é, deveria ter sido mantida em segredo e alguém, ilegitimamente, a desviou: disso, juiz ou procurador são responsáveis, sejam ou não autores.

 

A escuta telefónica, sua obtenção e sua utilização transformaram-se num sucedâneo para a Justiça, ou antes, para a investigação e o processo judicial. Até já terá havido um caso em que o Primeiro-ministro se demitiu, forçado pela denúncia de prováveis escutas. Ainda hoje não se esclareceu este caso. 

 

Não tenhamos dúvidas: as escutas telefónicas são o recurso de facilidade, a sarjeta, a arma do ignóbil e o veneno da Justiça. Há quem considere a escuta telefónica (e sua circunstância que ultrapassa, muitas vezes, em legalidade e odioso, a estrita prescrição judicial) como instrumento de investigação absolutamente legítimo. Não se perdoa, e muito bem, a tortura, os “bofetões”, os “safanões, a vigilância indevida ou o interrogatório fora de horas. Mas aceita-se a escuta. E assim se fere um dos princípios mais importantes da democracia: o respeito pelos cidadãos e pelos seus direitos.

 

Procure-se nos Evangelhos ou nos gregos, em Adam Smith ou Jefferson, em 

Albert Camus ou John Rawls: a Justiça em primeiro lugar! Para George Washington, é mesmo o mais firme pilar da democracia. É tão simples quanto isso: não há democracia sem Justiça. E não há Justiça sem respeito pela lei, pela moral e pelos cidadãos.

 

Os defeitos e a incompetência da Justiça, quando existem, podem ferir a democracia. Podem transformar-se em faltas de defesa dos direitos dos cidadãos, em ausência de protecção das liberdades. Mas tudo fica muito pior, quando a Justiça, ou quem quer que seja em seu nome, abusa dos seus poderes para procurar visar certas pessoas com intenções estranhas à Justiça e às suas obrigações. Com a Justiça orientada e selectiva, tudo é possível. Ameaças políticas, privadas ou comerciais. Chantagem pessoal, extorsão, armadilha política e posse de “segredos” a fim de condicionar o comportamento de outrem. Aproveitamento político e partidário das informações e dos segredos assim recolhidos. Lucros e negócios pessoais. Tudo o que deveria ser estranho à Justiça.

 

Quais são as grandes ameaças contra a democracia? A desigualdade? A pobreza? O nacionalismo? Parece cada vez mais ser a falta de justiça. A ausência de justiça como base do bom governo. As deficiências da justiça como alicerce da liberdade. A Justiça em Portugal não é o pilar de democracia, o chão das liberdades, nem a garantia dos direitos individuais. Já não é o instrumento de lisura dos processos políticos e democráticos. Já não é um código de honra dos seus agentes para defender as liberdades e a democracia com isenção. 

 

É verdade que a Justiça portuguesa, terá à sua conta, com honra e merecimento, investigações fulcrais de factos, pessoas e organizações. Mas também é certo que, noutros casos, os atrasos, as falhas processuais, as incompetências e o enviesamento deliberado se transformaram em serviços prestados a pessoas e organizações.

 

A luta, o confronto e a rivalidade entre grandes corpos de Justiça, magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, oficiais de Justiça e agentes das polícias judiciárias, são tais que se sentem e presentem no espaço público: razão para mais uma falta de confiança na Justiça. 

 

É verdade que houve, aqui e ali, juízes e desembargadores postos em tribunal, arguidos e julgados ou em vias de julgamento. Veremos em que resultam, se é que resultam nalguma coisa. Mas tais factos não bastam para incensar uns corpos profissionais, de soberania, cujos comportamentos deixam a desejar. 

 

Não é a direita contra a esquerda. Nem a esquerda contra a direita. Não são os privilegiados contra os desapossados. Ou os destituídos contra os poderosos. Ou os letrados contra os incultos. Tem-se a nítida impressão de que, entre nós, são todos contra todos, cada qual com os seus casos, as suas oportunidades, os seus pontos de ataque.

 

Não haverá quem, em Portugal, queira fazer estudo sério e isento sobre a Justiça? Quem se proponha fazer, estimular ou proporcionar a elaboração de um “livro branco” sobre a Justiça? Quem se proponha estudar, seriamente, sem preconceito, os feitos e defeitos da Justiça, os seus números e os seus factos, os seus êxitos e os seus falhanços? Seria livro fascinante.

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Público, 6.12.2025

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28.11.25

Grande Angular - Aos Sobrinhos e Netos

Por António Barreto

Sei que alguns de vocês votam agora pela primeira vez. Também sei que outros, desde que chegaram à idade adequada, votaram sempre. Uns, desde então, continuaram a votar nos mesmos, enquanto outros foram mudando. Também sei que alguns só votaram de vez em quando, enquanto outros nunca o fizeram. A todos saúdo e aos que nunca votaram digo com especial empenho, “pensa duas vezes, não perdes nada e, de qualquer maneira, a decisão é tua: se votares, não perdes liberdade, antes pelo contrário”.

 

A longa campanha eleitoral para a Presidência da República segue o seu caminho, está quase no fim. Depois das legislativas e das autárquicas, alguns de vocês perguntam-se sobre a utilidade destas eleições. O Presidente não tem poder. Os candidatos, este ano, não são grande coisa. Parece mesmo que há candidatos perigosos, seja porque, com a cumplicidade de partidos políticos, querem deixar tudo na mesma, seja porque, mesmo sem poderes para isso, querem mudar tudo e varrer o que for possível porta fora.

 

É provável que estas eleições e seus resultados não sejam muito importantes. Mas também pode acontecer que delas dependa a paz que se deve seguir. Ou que delas resulte grande desordem. Logo se verá o resultado. Mas, sem votares, nunca poderás dizer que contribuíste. É mesmo provável que, se as coisas não correrem bem, te arrependas de não ter dito, em seu tempo, o que querias e o que não desejavas.

 

Pensas que o essencial da vida que te agrada em nada depende da política e das eleições. O teu emprego, a tua casa, a família que estás a começar, a carreira que queres prosseguir, os locais que queres visitar e tudo em que queres empregar o teu tempo, das artes à profissão, tudo isso depende de ti e das oportunidades, nada depende da política e das eleições. Por isso, dizes tantas vezes que a política não interfere na tua vida.

 

Sei ainda que estás desconsolado ou decepcionada com a política e as eleições. Não suportas a mentira e a demagogia, cultivas a sinceridade e a honestidade. Gostas de jogo limpo, detestas a trafulhice. Estás farto ou farta de ver que os políticos não fazem o que dizem, nem dizem o que vão fazer. Abominas a ideia de que outras pessoas, em particular os políticos, em vez de te deixar escolher e decidir, te digam o que deves fazer.

 

Detestas a corrupção, os políticos que roubam, que nomeiam os seus amigos ou os correligionários do seu partido, que concedem licenças de construção a quem lhes interessa, que decidem conforme lhes dão “luvas”, presentes ou favores. Odeias os governantes, deputados, autarcas e altos funcionários que favorecem empresas e grupos, que dão vantagens a amigos ou a quem lhes paga, que permitem negócios estranhos e que vendem barato o património de todos ou do Estado.  Repudias os que deixam, porque lhes interessa, que se desenvolvam certas actividades clandestinas e ilegais, no comércio externo, na criação de empresas, no desenvolvimento de negócios escuros, nas actividades obscuras com certos produtos e com trabalhadores ilegais. E principalmente sentes repulsa pelas cunhas, quaisquer que sejam os autores e os beneficiados. E acima de tudo, vocês ficam furiosos com o facto de a justiça, tantas vezes, não ser capaz de reparar, punir ou prevenir.

 

Também sei que há dias em que quase desesperas ao ver povos assassinados, casas destruídas, cidades bombardeadas e fábricas incendiadas. Não percebes a mortandade da Ucrânia, não compreendes os massacres de Gaza. Estranhas as guerras civis no Sudão, no Iémen, na Síria, na Etiópia, na Nigéria, no Burquina Faso, em Moçambique e no Mali. Mas o que mais estranhas, o que realmente não percebes é que os países europeus, os países da NATO, os aliados do nosso país e as Nações Unidas não sejam capazes de evitar e contrariar estas guerras e estes massacres.

 

Fazes um juízo muito crítico sobre a evolução da sociedade portuguesa nas últimas décadas. Para quê envolver-se na política e para quê votar, se tudo fica na mesma, se nada muda, se ganham e perdem sempre os mesmos, se a pobreza continua tão evidente, se a desigualdade não diminui e se os portugueses, sem perspectivas nem oportunidades decentes, são obrigados a emigrar?

 

Não vos quero convencer de nada. O que mais respeito é a vossa liberdade de escolha e de pensar. Mas quero desmentir um facto ou uma opinião. Não é verdade que, nestes cinquenta anos, não houve mudança nem progressos. Nos anos 1960, quando eu era um jovem como vocês, mais de metade dos portugueses e das suas famílias não tinha em casa água corrente, nem electricidade, telefone, aquecimento ou sanitários. Mais de um terço não sabia ler e escrever, nunca tinha lido uma carta de amor, nunca tinha escrito um bilhete postal nem assinado um documento. Mais de um terço dos portugueses viviam no campo, trabalhavam na agricultura, nas florestas e nas minas e tinham verdadeiros salários de miséria. E a grande maioria dos cidadãos não podia dizer o que pensava, não tinha o direito de se exprimir ou de se associar, não podia ler os jornais nem ver os filmes que quisesse. As mulheres não tinham o direito de escolher algumas profissões, não podiam abrir contas bancárias, não conseguiam alugar uma casa ou iniciar um comércio, nem sequer ter um passaporte sem a autorização do marido. Muito longe dos outros europeus, os portugueses tinham a mais alta mortalidade infantil e a mais baixa esperança de vida. Eram tempos de pobreza. Eram tempos sem liberdades. Tudo isto, muito disto mudou. Hoje, o nosso país é incomparavelmente melhor do que há cinquenta anos.

 

É verdade que, passados todos estes anos, parece que a sociedade portuguesa começou a estagnar, a mudar pouco, a não melhorar. Tem-se a impressão de que o país está mal dirigido. Que os políticos não se dedicam a melhorar a vida dos outros, a vida de todos. Que os melhores entre os portugueses se dedicam às suas vidas, a si próprios e às suas famílias, esquecendo os outros. Que os políticos não se preocupam com os mais pobres, com os serviços públicos, com os hospitais, com as escolas e com as filas de espera. Que a corrupção e as cunhas continuam a ser moeda corrente. É possível que muito disto persista e mesmo que novas falhas surjam. Mas de nada vale ficar em casa. Esquecer. Fechar os olhos. Ignorar. De um modo ou de outro, estar presente é a melhor maneira de cuidar dos outros e de nos respeitarmos a nós próprios.

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Público, 2.11.2025

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22.11.25

Grande Angular - E a Justiça, senhores candidatos, a Justiça?

Por António Barreto

Justiça, isto é, os Tribunais e restantes órgãos e instituições judiciais fazem parte do poder político, são soberanos e independentes. A Constituição, suprema convenção da República, confere-lhes especial capítulo e dignidade. Como autónomos e soberanos que são, não estão submetidos a nenhuma instituição, a nenhum poder. O seu principal limite é o da lei. Que têm de cumprir e fazer cumprir. Independentes como são, ninguém pode interferir, dar ordens ou comandar. Mas, como todas as instituições humanas, entram em declínio periódico, perdem vitalidade, necessitam de mudança e renovação. Numa palavra, reforma. Ora, no nosso país, os tribunais e restantes instituições como a Procuradoria Geral da República, o Ministério Público, os Conselhos Superiores e outros Tribunais superiores, além dos numerosos tribunais civis, vivem há anos, talvez mesmo décadas, em crise crescente. O que nos faz pensar logo em mudança e modernização. E esperar pelas renovações necessárias. Todavia, o problema hoje é que a Justiça e as suas instituições perderam a capacidade de se auto-reformar. Depois de décadas a aumentar a sua força e a consolidar a independência, a Justiça encontra-se em beco sem saída, incapaz de realizar todas as suas funções com eficácia, prontidão, clareza e… justiça. No universo das instituições públicas portuguesas, a Justiça é talvez a mais criticada e mais mal vista pela opinião.

 

Depois de ter escapado ao 25 de Abril e à democracia, de ter passado ao lado da consagração dos direitos humanos, de ter evitado as implicações do mercado e da iniciativa privada e de ter ignorado, tanto quanto possível, a integração europeia e o respectivo direito, a justiça portuguesa parece estar ao abrigo de qualquer actualização necessária. Quase todos os indicadores disponíveis mostram uma justiça parada no tempo, com perdas ou estagnação de eficácia e com dificuldade em reparar quem merece ou castigar quem deve. Pior ainda do que de eficácia, a Justiça portuguesa parece estar a viver momento muito especial de crise de confiança, crédito e mérito.

 

Os magistrados judiciais e do ministério público aumentaram muito durante décadas (quatro vezes mais em outras tantas décadas), depois estagnaram e estão agora há anos em perda de número. Verdade seja dita que a produtividade e a eficácia, com mais ou menos recursos humanos, parecem nunca ter melhorado. Os sintomas são conhecidos e aparecem na imprensa todos os dias. Processos que se arrastam durante anos e décadas, sobretudo os que envolvem poderosos da política, das famílias e do dinheiro. Processos vistosos que esperam por resolução anos e anos. Uma opinião pública descrente que parece ter perdido a confiança. A permanente sensação de que há envolvimentos políticos graves, de que existem influências partidárias e de que as magistraturas estão divididas e se combatem entre si. A certeza de que são as classes médias, os trabalhadores, os destituídos, as mulheres e as crianças que mais sofrem com a má justiça.

 

De contornos mal desenhados, pouco nítidos, sempre susceptíveis de insuficiente compreensão, há ainda, o sentimento e a crença de que existem intenções políticas e partidárias na acção e na inacção de procuradores e magistrados relativamente a casos que possam envolver políticos. É, aliás, digno de nota, talvez inédito na Europa contemporânea, o facto de haver tantos primeiros-ministros, ministros, secretários de Estado e líderes de partidos a contas com a justiça, sejam ou não verdadeiras as causas, as suspeições ou os boatos. Contam-se por muitos os processos, as ameaças de processo, os julgamentos, as condenações, os arguidos, os suspeitos e as detenções de políticos e governantes. Somam-se as ameaças, os inquéritos abertos ou sugeridos, as escutas telefónicas durante anos, a vigilância discreta, os processos secretos que não podem ser consultados pelos suspeitos ou pelas vítimas e os relatos de supostas ou reais escutas telefónicas. Contam-se por muitos os processos iniciados e nunca acabados, as vigilâncias não concluídas, as ameaças de inquéritos injustificados, as fugas de informação e de matéria processual, o boato selectivo e a intriga dirigida. Será que as classes políticas portuguesas são particularmente corruptas, ilegais e libertinas? Ou será que as magistraturas portuguesas são particularmente velhacas, sedentas de poder e antidemocráticas?

 

Os actuais candidatos a Presidente da República têm-se revelado muito activos. As características especiais desta eleição fazem com que as campanhas sejam particularmente intensas. Os candidatos mostram-se muito intervenientes, com ideias para a acção política, opinião sobre quase tudo o que existe no espaço público, sugestões para a economia, a saúde, a educação, a segurança social… quem sabe que mais. Em quase tudo são excessivos. No entanto, relativamente à Justiça, o silêncio é absoluto. Nem crítica ou comentário, nem reforma ou planos. Ora, a verdade é que a crise da justiça é talvez a mais antiga e a mais grave da democracia portuguesa. E os candidatos dizem… nada! Ou tão pouco!

 

O que não destoa do silêncio estranho das instituições, incluindo deputados e autarcas, relativamente à Justiça e aos Magistrados e Procuradores. Dir-se-ia que não sabem. Ou não querem. Pior ainda: que têm receio.

 

Na ausência de auto-reforma, que seria o ideal, a reforma e o melhoramento da justiça só podem vir de fora. Do governo? Do parlamento? Do presidente? Por causa da independência dos tribunais, do governo só devem vir os meios. Do parlamento, a legislação. Do Presidente da República é que pode vir algo mais: a influência, a inspiração, a energia e a preocupação.

 

Não esqueçamos que o Presidente tem o poder de nomear o Procurador Geral da República, o presidente do Tribunal de Contas e dois vogais para o Conselho Superior da Magistratura. Parece pouco, mas não é. É um enorme poder. Mas poderá ainda influenciar partidos, corpos profissionais, instituições e opinião pública. Como poderá inspirar deputados e eleitos. E persuadir magistrados. Tudo isto, sem pisar os pés da independência e da autonomia. E mesmo sem esperar pela revisão da Constituição.

 

Ajudava, por parte dos candidatos, mais empenho e mais sentido da responsabilidade. Mas não. Atá à data, à Justiça disseram nada!

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Público, 22.11.2025

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15.11.25

Grande Angular - Quanto vale ser Português?

Por António Barreto

Os Socialistas decidiram solicitar ao Tribunal Constitucional o exame da lei sobre a nacionalidade aprovada pelo governo e pelo parlamento. Ainda bem que o fizeram. A questão não é só política (social e cultural), é também constitucional. Na verdade, prever a perda da nacionalidade a portugueses naturalizados e culpados de crimes implica admitir que haverá duas qualidades de cidadãos: uns que se podem expulsar e desnaturalizar; e outros para quem os castigos da justiça bastam. Eis uma disposição moralmente inaceitável. Mas é também de uma inconstitucionalidade flagrante. Entre os governantes e os deputados que aprovaram tal lei, há pessoas com pergaminhos intelectuais e jurídicos, há gente sensata e profissionais competentes. Não se percebe como a miopia ou a falta de segurança, para já não dizer a arrogância, conseguem sobrepor-se àquelas qualidades a fim de aprovar esta ignominia.

 

O governo e o parlamento são livres de aprovar as leis em que acreditam. Mais ou menos sociedade civil, mais ou menos igualdade, mais ou menos Estado: cada um entende à sua maneira. Mais ou menos segurança, mais ou menos riqueza, mais ou menos solidariedade: governantes e deputados têm o direito de aprovar o que defendem. Muito da democracia e do Estado de direito é composto de convenções e de acordos passageiros. A questão dos prazos de residência dos candidatos é relevante, mas apenas traduz opções administrativas, eventualmente culturais, sobre as quais poderá haver pluralidade de opiniões. Desolador é ver que os governantes e os deputados que aprovaram esta lei o fizeram porque acreditam ou porque lhes dá jeito. Na ocorrência, os dois motivos são válidos. Em qualquer dos casos, é lamentável ver a mediocridade em plena acção.

 

O dispositivo da perda de nacionalidade é significativo. Os seus responsáveis consideram-se capazes de avaliar comportamentos e de decidir discricionariamente sobre o que vale e quem merece ou não ser português. Pensam-se à altura de decidir contra a Constituição para tentar aproveitar a maré. Entendem que os portugueses naturalizados têm mais obrigações do que os residentes nacionais. Pensam que os nacionais têm desculpa, enquanto os naturalizados não têm. Este é o pior aspecto da lei, aquele para o qual esperamos a demolição pura e simples pelo Tribunal Constitucional e pelo Presidente da República.

 

Mas há também aspectos risíveis e presunçosos. Os que estabelecem as condições culturais para que alguém possa obter a nacionalidade. Se o domínio da língua portuguesa faz algum sentido, já o conhecimento da cultura deixa a desejar. Qual o grau de conhecimento? Não se está a criar uma exigência que nem a maioria dos portugueses seria capaz de satisfazer? Também se exige que os candidatos conheçam suficientemente a história de Portugal e os símbolos nacionais, assim como os direitos e deveres fundamentais inerentes à nacionalidade portuguesa e a organização política do Estado, além da declaração solene de adesão aos princípios do Estado de Direito Democrático. Eis matérias de muito difícil tratamento, cujos graus de adesão são impossíveis de medir. Mais uma vez, exigências tais que talvez a maioria dos portugueses, incluindo governantes e deputados, não consegue cumprir. Também aqui, além de intenções estranhas, do domínio do espírito totalitário, se pode detectar um reflexo segregador a exigir dos naturalizados cultura, profissão de fé, respeito democrático, conhecimentos de história e acatamento dos princípios constitucionais que não são exigidos aos portugueses originários.

 

Houve um ministro, geralmente comedido, que perdeu a cabeça e proclamou: a partir de agora “Portugal é mais Portugal”. É demagogia tão barata! Tão inútil! Tão falsa nos seus fundamentos! Donde virá a responsabilidade por tal desatino? Terá sido do CDS? Do Chega provavelmente? Talvez do PSD? Quem sabe se do governo. Da inteligência não foi certamente. Nem da democracia. Nem da liberdade. O slogan não resiste a uma tentativa de compreensão. Portugal fica mais Portugal simplesmente porque endurece as condições de aquisição da nacionalidade? Não se percebe. A não ser que se aceite a demagogia como critério da portugalidade.

 

Apertaram-se as condições e as convenções. Aumentaram-se as exigências, de acordo com estimativas. Mais tempo em Portugal, mais casado, com pais a viver há mais tempo… Tudo isso é possível. Mas denota medo e falta de confiança. Traduz um desvio de intenção. Na verdade, os visados desta lei são os imigrantes. Mas, para aproveitar a maré ideológica e comover espíritos inquietos, aproveita-se a discussão sobre a imigração, para poder brilhar com o nacionalismo. É tão pacóvio tudo isso!

 

O controlo da imigração, indispensável e necessário, não se faz com condições mais difíceis na aquisição da nacionalidade, dependendo dos anos de residência e de trabalho. O controlo da imigração tem outras vias, outros objectivos e outras exigências. Por exemplo, obrigar à legalidade da entrada no país e da residência. Ou exigir a legalidade do trabalho e do emprego. Ou ainda impor a inscrição na Segurança Social e o cumprimento dos deveres fiscais. E finalmente demonstrar legalmente a identidade e as relações familiares legais: eis requisitos úteis para controlar a imigração. Assim como é necessário distinguir entre refúgio, asilo e imigração. Tudo isto é essencial, para construir uma sociedade justa e democrática. Nada disto tem qualquer relação com a naturalização e a nacionalidade.

 

O descontrolo da imigração significa o apoio à ilegalidade, à clandestinidade e ao tráfico de mão-de-obra. Assim como o favorecimento do mercado da droga, da exploração ilimitada dos trabalhadores, do abaixamento de salários dos residentes e da baixa produtividade. O descontrolo da imigração é uma abdicação do Estado de direito, um convite ao subterfúgio ilegal, à residência fictícia, ao mercado de endereços falsos, à prostituição de mulheres, homens e menores, à associação criminosa em geral. Nada disto tem a ver com a nacionalidade ou a naturalização. Tudo isto tem a ver com a legalidade e a política de imigração. Só a demagogia muito soez entende que a naturalização tem efeitos na criminalidade ou no descontrolo da imigração. Em poucas palavras: os criminosos castigam-se com a justiça, não com a nacionalidade.

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Público, 15.11.2025

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8.11.25

Grande Angular - Missão em Belém

Por António Barreto

Talvez seja cedo. Mas os programas políticos dos candidatos à Presidência da República ainda não são conhecidos. Isto é, não foram anunciados e publicados os programas formais de candidatura. As páginas da Internet, mesmo as oficiais, são pouco esclarecedoras. No entanto, após umas semanas de entrevistas, reuniões, sessões de esclarecimento e outros ágapes, já é possível delinear algumas orientações mestras, algumas prioridades. E sobretudo algumas faltas.

 

Nenhum candidato se comprometeu ainda com linhas programáticas claras. O tom geral, o clima e a música são já detectáveis, não os compromissos reais nem as intenções. O amor a Portugal e à democracia, o empenho pela liberdade e a garantia de estabilidade tocam a todos, não há diferenças nem novidades. Também a luta contra a corrupção, a preocupação com o bem-estar dos portugueses, a certeza da saúde e da educação, a ternura pelos pobres e pelos idosos e a criação de riqueza são de todos. Uns são mais atentos aos pobres, outros à Pátria. É difícil, com generalidades destas, encontrar diferenças e sinais distintos.

 

Mas o desenho exacto das funções presidenciais desejadas e prometidas está fora de campo de visão e de compromisso. Todos querem fazer bem ao país, mas ninguém diz como quer tratar o governo, o parlamento e as instituições. Ora, os grandes problemas, a exigir compromissos, são os da natureza das funções presidenciais. Como se sabe, a Constituição é essencial, mas não chega. O estilo próprio é indispensável para clarificar. A relação com o governo e o parlamento é a pedra de toque. A natureza da função presidenciais depende muito de várias condicionantes. Como a personalidade e o carácter do próprio e do chefe do governo. Ou a força da maioria parlamentar. Ou ainda a noção dos dispositivos constitucionais. A Constituição é importante, mas a interpretação que dela se faz é decisiva.

 

Terá o Presidente uma função liderante das instituições e dos órgãos de soberania? Ou apenas de cooperação com o governo e o Parlamento e equiparada à destes? Ou ainda uma função mista de, por um lado, Supremo Comandante e máximo representante da nação e do Estado e, por outro, ao apoio do governo e ao parlamento? É esta última, a mais difícil e complexa, que parece ser a mais útil para o país e a mais conforme com as necessidades e o espírito confuso da Constituição. Na verdade, ao Presidente compete apoiar o governo e o parlamento, não liderar nem orientar. Muito menos fiscalizar ou avaliar. É verdade que a Constituição, lida de certa maneira, pode sugerir uma liderança. Mas tal interpretação parece claramente a pior fonte de perturbação e confusão. Houve presidentes que, durante parte dos seus mandatos, entenderam que o apoio à acção do governo e do parlamento era o seu principal objectivo, a sua principal missão. Foram alguns dos melhores momentos da nossa vida constitucional. Também houve casos em que os presidentes entenderam que o seu papel era o de responsável, de liderança ou de empenho na acção política. Foram alguns dos piores momentos da nossa vida constitucional.

 

Olhando para o actual momento político, quando já só faltam dois meses para as eleições, é evidente a ausência de compromissos dos candidatos. Pior ainda, é clara a tendência, manifestada por todos os candidatos, para uma interpretação maximalista ou excessiva das suas funções. Todos pretendem assumir um papel liderante. Todos desejam desempenhar funções quase executivas, com foco na saúde, na educação, na criação de riqueza e na regulação das migrações, para já não falar na defesa nacional e nas relações externas. Na verdade, todos os candidatos actuais, mesmo sem a força e a clareza dos compromissos formais e dos programas de candidatura, dão claros sinais de pretenderem exagerar o seu papel, de se sobrepor aos governos, de com eles cooperar sem apoiar, ou até possivelmente dirigir. Parece mesmo que todos os candidatos se preparam para ultrapassar os limites da Constituição. Nestas coisas, o mimetismo funciona: se um exagera, logo os restantes seguem a mesma via.

 

É verdade que o papel do Presidente pode variar conforme as personalidades e as circunstâncias políticas. Feliz ou infelizmente, não existe uma dogmática para a sua interpretação. Mas uma coisa parece certa: a rivalidade de legitimidades, a competição de poderes e a sobreposição de competências são negativas para o país e o sistema democrático. Em contraste, o papel de apoio presidencial ao governo não cria problemas novos, não é fonte de conflitos desnecessários, nem perturba o funcionamento das instituições.

 

Se vivêssemos tempos pacíficos de equilíbrio político e de estabilidade institucional, seria talvez o momento adequado para pensar a tão adiada revisão constitucional. Uma das mudanças mais interessantes seria mesmo a de repensar o modo de eleição do presidente. Esta última, feita directamente pelo povo, poderia ser substituída pela eleição indirecta, provavelmente fonte superior de equilíbrio e estabilidade. Mas não parece ser possível. Por causa de Salazar e de Delgado: o primeiro deu má fama à eleição indirecta, o segundo deu bom nome à eleição directa. Depois, porque nada ajuda a que se faça, serenamente, nos tempos que correm, uma revisão constitucional.

 

De toda a maneira, quem quer que seja o presidente eleito e qualquer que seja o entendimento dos seus poderes, a acção presidencial pode incluir dimensões excepcionais de acção. Pode o Presidente ter papel relevante, mormente em apadrinhar ou estimular o funcionamento e a reforma de sectores importantes da vida pública, nomeadamente os de cariz mais nacional do que político. Por exemplo, o Presidente, como Supremo Comandante, pode perfeitamente, talvez deva mesmo, estimular a organização e a reforma da defesa nacional. Como pode, com grande proveito para todos os cidadãos, activar e até inspirar a reforma da justiça.

 

Esta última é particularmente necessária. Os tribunais, como órgãos de soberania, necessitam de inspiração, de energia e de liderança institucional, que não pode ser dada pelos governos nem pelos parlamentos, sob pena de perda de independência. Por outro lado, as divisões entre corpos da justiça fazem com que esta não seja capaz, sem impulso externo e sem legitimidade superior, de se reformar. Até hoje, os parlamentos, os governos e os magistrados revelaram-se impotentes ou simplesmente sem vontade para reformar a justiça. Talvez um Presidente da República consiga. 

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Público, 8.11.2025

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1.11.25

Grande Angular - Ventura, Salazar e os Ciganos

Por António Barreto

Saber se Ventura é ou não fascista é questão relativamente pouco interessante. Nem ele o saberá, talvez. Há hoje, à face da terra, em Portugal e no mundo, outras variedades de simpatias políticas, umas mais interessantes, outras mais perigosas. Saber se ele é racista, colonialista, adepto da supremacia branca, populista, machista, paternalista, integrista ou integralista, eis questões também pouco importantes, mas às quais já se pode prestar alguma atenção, a fim de compreender a pessoa.

 

Os cartazes de Ventura, tanto o dos Ciganos, como o do Bangladesh, são de enorme mau gosto, são tolices irremediáveis, mas de enorme eficácia: tinham como objectivo o de acicatar os piores sentimentos de parte da população e o de provocar oposição e ameaças de censura. Objectivos alcançados, pelo menos em parte. Esperemos por mais até às próximas eleições. E saibamos resistir ao impulso de algumas pessoas que consiste em censurar e proibir.

 

Uma das expressões favoritas de Ventura, “pôr isto em ordem”, é de uma absoluta infantilidade, é destituída de cultura e pensamento, trata-se de um mero desabafo próprio de quem procura o reflexo condicionado, não a razão nem sequer o sentimento. Deixemo-lo prosseguir nessa via, até cair no ridículo ou até revelar a vacuidade dessa palermice inqualificável. A expressão constitui lugar comum ou cliché conhecido, tem muitas décadas de existência, não quer dizer nada e quer dizer tudo. Cada pessoa que a ouve percebe-a como quer, dá-lhe o conteúdo que deseja. É uma palavra de ordem que nada implica de conteúdo, nem de política, nem de objectivos, mas apenas alude à entrega do poder a um aventureiro. É retórica usada por todos os candidatos a líderes, verdadeiros ou maquilhados, que apenas pretendem que lhes seja dada confiança sem limites. Trata-se de expressão com equivalentes, igualmente destituídos de conteúdo, tais como “limpeza” e “vassourada”. Que se vêm acrescentar a outra de uso corrente e preferida por Ventura, sem qualquer conteúdo nem sentido, mas de forte capacidade de excitação, que é a “vergonha” que ele exprime e a “falta de vergonha” dos outros. A liberdade de expressão também inclui estes lugares comuns e estes disparates. 

 

Recentemente, Ventura fez nova aquisição teórica e política, para não dizer cultural: a expressão “é preciso um Salazar” ou mesmo “nem três Salazares chegavam”. A tolice é tanta que nem sequer tem graça. É apenas confrangedor, mas tem um mérito: revela as inclinações de Ventura. Veremos como os eleitores lhe pagarão esta confissão.

 

Estas expressões de Ventura, estas provocações de pequeno porte e reduzida inteligência, têm o condão de excitar os seus seguidores: é bom para eles, é alimento para as almas. Mas também têm o efeito de suscitar, junto dos seus adversários, as piores reacções imagináveis, da censura à proibição, passando pelo processo judicial. Punir Ventura porque é racista? Porque diz parvoíces? Proibir Ventura de dizer disparates? Não faz qualquer sentido. Ventura é assim. Pensa e diz coisas estranhas. Não sabemos se pensa, mas pelo menos diz.

 

Proibir e castigar fazem sentido quando se trata de actos, de factos, não de pensamentos ou palavras. Proibir intervenções ou cartazes por serem a tradução de “discurso de ódio” é acto tão condenável quanto o da utilização desse mesmo discurso. O “discurso de ódio” é uma das grandes invenções do tempo presente. Uma das grandes idiotias. O que é exactamente ninguém sabe. Ou antes: cada pessoa sabe, porque cada pessoa define o seu próprio ódio, cada um define os limites que prefere. Daí a encontrar definições gerais e abstractas, limites reais e palpáveis, é uma impossibilidade. Desabafar, criticar ou fazer ironia à custa de um povo ou de uma nacionalidade é “discurso de ódio” conforme quem denuncia e quem pratica: a avaliação do ódio será diferente conforme se trate de americano ou russo, judeu ou palestiniano, africano ou chinês. Não se trata, como é evidente, de terreno sólido para legislar.

 

Os gestos, os actos, os factos e as acções são uma coisa. As vozes, a palavra, a expressão pública de qualquer crença, o desejo, a vontade, o desprezo ou o insulto são outras coisas. Enquanto não houver acções racistas e violentas, incitamento e organização da violência, agressão a pessoas e vandalização de bens, os desabafos de Ventura e outros não passarão disso mesmo, palavras. Desde que não violem ou atentem realmente, não apenas verbalmente, contra os direitos e a integridade de imigrantes, ou seja de quem for, as palermices de Ventura e outros serão desabafos, desejos de arruaceiros e demagogia barata. Querer “correr” com os estrangeiros e os imigrantes é tão inteligente quanto “correr” com capitalistas, sindicalistas, padres ou militares. 

 

Todos têm o direito de não gostar de ciganos, bengalis, árabes, negros, russos, americanos e até portugueses. Todos têm o direito ao preconceito e a considerar inferiores, estúpidos, perigosos e ameaçadores os outros povos. Mais difícil ainda: todos têm o direito a exprimir publicamente os seus pensamentos, as suas crendices e os seus preconceitos. Tentar censurar, proibir ou controlar a expressão verbal dos seus pensamentos é tão grave quanto cometer actos de agressão ou de violência.

 

Há ainda a questão do insulto. Muitas pessoas pensam que o insulto deve ser controlado, censurado, eventualmente castigado. É uma velha questão. Sem pretender inovar ou ser exaustivo, o importante é distinguir entre insulto e calúnia. A segunda é em geral motivo de processo e condenação. Não se pode acusar alguém de ter praticado ou cometido actos que comprometem a honra, a reputação, a carreira ou a vida privada. Já o insulto é livre. Até ao ponto de prejudicar outrem. Sem isso, o insulto faz parte da liberdade de pensamento e de expressão. 

 

As intenções de Ventura e de outros são ou parecem claras: quer ser perseguido, pretende ser proibido de falar, gostaria de ser ilegalizado, espera que alguém o acuse em tribunal, deseja que a polícia o procure e pensa mesmo que alguém, privado ou público, o poderia ameaçar. Anseia ter razões de queixa, com a esperança de ser uma vítima dos que são contra a liberdade de expressão. Ficará encantado se o acusarem de discurso de ódio. Será para ele glorioso o dia em que será acusado e processado por uso da liberdade.

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Público, 1.11.2025

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25.10.25

Grande Angular - A Burca e o Passaporte

Por António Barreto

A Burca e o Passaporte têm-se revelado fontes de polémica inesgotável. Com os melhores e os piores argumentos. Como giram à volta de questões nacionais e identitárias, além de religiosas e de género, são aproveitadas pelos que gostam do conflito. É bem que assim seja, pois, sob a aparência de temas menores e de oportunidade duvidosa, dizem respeito a problemas fundamentais.

 

A Burca (e o Nicab) em primeiro lugar. Tudo o que se diz sobre esta armadura de encobrimento é verdade. Questão de género. De identidade. De religião. De costume. De tradição. Os homens obrigam e as mulheres gostam, detestam ou submetem-se. Tudo o que se disser da Burca é verdade. Tradição? Sim, mas detestável. Religião? Talvez, mas opressiva. Identidade? Com certeza, mas odiosa. De costume? Claro, mas repulsivo. Questão de género? Óbvio, mas execrável.

 

A permissão, no Ocidente democrático, de utilização da Burca nos espaços públicos é um exemplo de abdicação, de oportunismo e de negação dos seus próprios valores. É sinal de perversão e de corrupção moral. É o medo de existir e de afirmar. É o receio de ser quem é. É a perda de solidariedade, de compaixão e de fraternidade perante mais de metade dos seres humanos.

 

A Burca é um gesto de violência, de opressão, de desumanidade e de exploração das mulheres pelos homens. Couraça repressiva e sinal de propriedade dos machos ciumentos e inseguros. Instrumento de autoridade prepotente. Afirmação da condição inferior e servil das mulheres. Garantia de que a mulher é objecto de uso sexual, criada de servir e instrumento de reprodução. O Ocidente democrático não deve tolerar. Como não deve aceitar a excisão, o casamento forçado, a venda de crianças, a poligamia, a lei de Talião, a prostituição forçada, o lenocínio, a pedofilia, a tortura e a escravatura. Todos estes actos e gestos são antigos, de tradições milenares, uns de legado nacional, outros de costumes alheios. Mas a antiguidade e a tradição não justificam que se aceite hoje. Já foram banidos pelo progresso moral e político.

 

A Burca contraria um princípio da sociedade democrática: a identidade pessoal. Os direitos fundamentais são humanos e individuais, não de colectividades ou de igrejas. A identidade pessoal é afirmada pelo Bilhete de Identidade. A identificação é indispensável em actos jurídicos. O voto, o casamento, a consulta médica, a inscrição na escola, o atendimento na segurança social, o recebimento de encomendas, o pagamento de deveres ou a entrada em certos locais, tudo isso depende da identificação. É na cara que se vê a identidade, confirmada por documento com fotografia. A responsabilidade é individual, quer seja no trabalho, na política, no contrato, no comportamento ou na família. Esconder a identidade de alguém é um gesto degradante para a vítima e para todos nós que somos obrigados a conviver com tal prática desumana.

 

Estranho é que tanta gente bem-intencionada, tantos democratas e tanta gente de esquerda democrática esteja disponível para tolerar esta e outras práticas opressivas. Que se passa na mente de tantos democratas dispostos a negociar princípios fundamentais e valores essenciais? Muitos democratas, a começar pela esquerda democrática, portam-se mal neste caso. Não escondem a covardia. Têm uma visão oportunista das relações entre povos e nacionalidades. Têm uma inexplicável incapacidade de se mostrar a favor dos direitos das mulheres e contra o machismo, se este for obra e graça de homens do terceiro mundo. Consideram a prepotência masculina condenável entre europeus, mas aceitável entre povos africanos e asiáticos.

 

É verdade que, como sustentam os envergonhados, que a Burca não é um problema de dimensão estatística importante, que não revela uma conflitualidade actual e que não é uma situação crítica em Portugal. Tais argumentos são moralmente fracos. Tal como a pornografia infantil e a violência exercida sobre mulheres, a condenação da Burca não depende da estatística, uma é uma a mais.

 

Evidentemente, a direita aproveitou o tema, desencadeou uma luta inesperada e fez a maior demagogia possível. Mas acontece que tem razão em querer proibir o uso da Burca no espaço público. E a esquerda não tem razão em tolerar ou encolher os ombros. Já cerca de vinte países europeus proibiram o uso da Burca e não consta que estejam todos dominados pela extrema-direita. Ainda por cima, esta proibição, em nome dos direitos individuais e das mulheres, convém à direita, tão defeituosa nos direitos humanos e sociais. Contra a Burca, a direita faz boa figura. Por mais que custe a alguns.

 

Ao mesmo tempo que a Burca (e o Nicab) discute-se a nacionalidade. Não é por acaso. Há circunstâncias actuais que favorecem essa convergência: as questões de imigração, de integração e de multiculturalismo. Portugal e a Europa, além de outros, vivem com intensidade estes problemas. A direita, no poder em Portugal, repara que esta discussão lhe pode interessar, dar vantagens, incomodar a esquerda e esconder problemas sociais e económicos. Tudo isto é conhecido. Tudo isto é real. E não há mal nisso. Acrescente-se o facto, bem percebido pela direita, de as esquerdas estarem divididas e desconfortáveis. Em poucas palavras: para as direitas, a Burca e o Passaporte podem ser trunfos nacionalistas e incómodos para as esquerdas. Estas não têm uma posição clara, uma solução de liberdade e igualdade conjugada com um princípio de identidade.

 

A proposta feita pela direita portuguesa de considerar a nacionalidade como concessão ou atribuição reversível é detestável. A direita pretende retirar a nacionalidade aos naturalizados que se portem mal, que cometam certo tipo de crime, que tenham condutas penalmente reprováveis. Tudo, nesta proposta, transpira a autoridade execrável, a falta de cultura política e a sentimento narcisista de superioridade racial. A nacionalidade obtida através da naturalização não é uma mercadoria, não é um privilégio, não é uma outorga, nem é uma vantagem distribuída aos amigos ou a quem tenha dinheiro. Depois de atribuída a quem cumpre condições legais conhecidas, a naturalização cria cidadãos iguais aos naturais. Não se imagina que poderes do dia possam retirar a nacionalidade e permitam deportar. Não é aceitável que se pretenda criar dois estatutos de nacionalidade, a definitiva e a condicional.

 

Contra a Burca e contra a nacionalidade reversível: eis dois combates que nos honram.

Público, 25.10.2025

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18.10.25

Grande Angular - Guerra e Paz

Por António Barreto

Quando nasci, começavam os russos (naquela altura chamavam-se soviéticos) a contra-ofensiva que os levaria de Estalinegrado a Berlim. Pouco depois, os Aliados desembarcavam na Normandia e iniciavam a sua caminhada até Paris e a seguir Berlim, onde encontrariam os russos. Tudo em guerra que matou mais de 55 milhões de civis e militares. Não faltava muito, nesse ano, para que os americanos, com a ajuda de duas bombas atómicas, vencessem os japoneses na guerra do Pacífico que liquidou mais de 30 milhões de pessoas. Não recordo esses tempos, porque ainda não tinha cabeça para pensar, nem olhos para ver. Mas já vivia. Poucos anos mais tarde, da guerra da Coreia, país que ainda não sabia muito bem onde ficava, chegavam ecos que me falavam de batalhas, de mortos e de feridos. Era a primeira vez que ouvia falar de guerra. Desde então, não se passou um dia sem que não se falasse de guerra algures no mundo.

 

Ainda na juventude, as invasões da Hungria e da Checoslováquia, pelos Russos, não terão feito muitos mortos, mas destruíram a liberdade, o que não é pouco. Antes disso, na Ásia, tinha começado a época das independências (Índia, Paquistão, Indonésia, Birmânia, Sri Lanka e outros) e das guerras coloniais e similares. A da Argélia, por exemplo, durante oito anos. E no império português, em Angola, na Guiné e em Moçambique, durante quase quinze anos. As guerras do Vietname, primeiro contra a França, depois contra os Estados Unidos, a seguir contra o Camboja e finalmente contra a China, marcaram gerações, bem ou mal, tiveram enorme influência no mundo, designadamente nos Estados Unidos e na Europa. O activismo e a solidariedade não nasceram então, mas desenvolveram-se com rapidez.

 

No Próximo Oriente, não houve um dia sem guerra ou terrorismo. Da guerra da Palestina à criação do Estado de Israel, do Suez aos Seis Dias e do Yom Kipur a Gaza, para apenas mencionar os conflitos mais conhecidos. Incluindo o Líbano, a Síria, a Jordânia e outros, o estado natural daquela parte do mundo é o de guerra. Ali ao lado, a guerra entre o Irão e o Iraque (quase dois milhões de mortos), a guerra do Golfo e as do Kuwait, da Síria e do Líbano, acrescentam anos de conflito e muitos milhares de mortos.

 

De África, ultrapassados os conflitos coloniais e as lutas pelas independências, iniciaram-se as guerras civis ou entre nações africanas. Com muitos milhões de vítimas e de deslocados, foram várias as guerras dos Congos (quatro a cinco milhões de mortos), ou ainda no Uganda, no Ruanda (mais de um milhão de vítimas), na Somália, no Sudão, na Nigéria e Biafra (mais de 2 milhões de mortos), na República Centro Africana, no Chade, na Etiópia, na Eritreia e no Quénia.

 

Na Ásia, a partir dos anos 1950, raramente os canhões se calaram. Entre a Índia e o Paquistão, no Bangladesh, na Indonésia, no Camboja, no Laos, na Birmânia e nas Filipinas. Ou no Afeganistão, onde foram derrotados sucessivamente os ingleses, os russos e os americanos. No outro lado do mundo, na Colômbia, foram trinta anos de guerrilha e trezentos mil mortos.

 

Meia dúzia de décadas depois da segunda guerra mundial: foram dezenas de milhões de mortos e centenas de milhões de deslocados e refugiados. Neste período, a Europa viveu um longo e inédito período de paz. A primeira excepção foi a Bósnia. E agora foi a Ucrânia e respectiva invasão russa. Mas até esta última parece já passar para os finais dos boletins informativos, na secção que se chama “outras notícias”. Habituámo-nos à guerra, à morte, aos feridos e à dor dos outros (Susan Sontag). A guerra já não incomoda, os mortos excitam pouco e a paz deixou de interessar. Parece que as guerras já não preocupam ninguém, a não ser que sirvam para denunciar alguém, para visar um inimigo, para denunciar um governo ou um país. A solidariedade, tão exibida e demonstrada, já só tem sentido quando se visa alguém ou algum governo que se considera inimigo.

 

A matança de Gaza foi um excelente pretexto para vociferar solidariedade. Os marinheiros da “flotilha” navegaram e protestaram enquanto havia americanos e judeus contra quem lutar. E palestinianos mortos e esfomeados a favor de quem se exprimir, ou antes, que serviam de boa justificação. Quando surgiu uma hipótese de paz, quando se assinou um frágil e incerto cessar fogo e quando começaram a chegar a Gaza os camiões com ajuda alimentar e medicamentos, os protestos calaram-se e os marinheiros desapareceram. 

 

O Presidente Trump é detestável, um verdadeiro narcisista paranóico, um vaidoso amante de dinheiro e poder, é tudo isso, mas, nem que seja pelas más razões, conseguiu qualquer coisa parecida com a paz ou o cessar fogo. Merece louvor. Sem que este seja suficiente para apagar todos os seus enormes defeitos, todas as causas absurdas que ele defende. Nem o poder absoluto que ele procura construir. Mas merece elogio! E a assinatura de cessar fogo, no Egipto, com a pompa de dezenas de dignitários, merece aplauso. Não vi desfiles nem cortejos de amigos dos Palestinianos a manifestarem o seu regozijo por esta hipótese de paz. Não reparei num só marinheiro da “flotilha” saudar a paz ou o cessar fogo. É possível que este cessar fogo seja várias vezes desmentido e traído por Israel ou pelo Hamas. É provável que as tréguas ainda sirvam para preparar novos ataques e para ganhar vantagens sobre os adversários. E não se ignora que, em qualquer altura, incidentes vários podem pôr tudo em risco ou em causa. Verdade. Mas uma hora de cessar-fogo vale vidas e dá uma oportunidade à paz.

 

A selvajaria criminosa do Hamas, bem visível desde o 7 de Outubro, e o cruel massacre criminoso da população de Gaza pelas forças armadas de Israel e por Netanyahu não se apagam, nem com um futuro acordo de paz. Mas qualquer passo dado no caminho da paz e do fim da guerra, qualquer movimento tendente a ajudar doentes, a tratar dos feridos e a alimentar esfomeados, merecem aplauso e encorajamento. Mas não se vê ninguém. Na verdade, não se saúda a paz, mas manifesta-se o anti-semitismo, louva-se o antiamericano e festeja-se o anti Israel. Tal como se proclama o anti-islamismo. Condena-se quem faz a guerra. Não se festeja quem faz a paz.

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Público, 18.10.2025

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